sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O governo e o Congresso tentam constranger o STF com a absolvição simbólica dos mensaleiros


18/02/2011
 às 23:25 \ Direto ao Ponto

O governo e o Congresso tentam constranger o STF com a absolvição simbólica dos mensaleiros

Vista de longe, a ascensão do deputado João Paulo Cunha à presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara parece uma patifaria a mais na rotina de obscenidades que transformou o Congresso numa Casa do Espanto. Se um José Sarney preside o Senado, se reuniões de líderes frequentemente lembram rodas de conversa em pátio do presídio, se o corregedor da Câmara chegou ao posto por ter sido o melhor aluno do professor de bandalheiras Severino Cavalcanti, não há nada de espantoso na entrega do comando da mais importante comissão a um parlamentar acusado de corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro no processo sobre o mensalão que corre no Supremo Tribunal Federal.
Sim  a escolha feita pela bancada do PT não surpreendeu ninguém: essa gente não não desperdiça chances de debochar dos brasileiros honestos. Mas a exumação festiva do presidente da Câmara do Mensalão não foi um ultraje qualquer, alerta a contemplação menos ligeira do episódio. Associada a meia dúzia de infâmias recentes, a afronta atesta que está na fase dos arremates a ofensiva, concebida em parceria pelo governo e pelo Congresso, para constranger o STF e livrar do merecidíssimo castigo a quadrilha que protagonizou o maior escândalo da história da República.
Em 17 de julho de 2005, depois de 40 dias de sumiço e mudez impostos pelo dilúvio de revelações desencadeado pelo deputado Roberto Jefferson, Lula recuperou a voz em Paris para explicar que onde todos viam uma roubalheira de dimensões amazônicas ele só conseguia enxergar um caso de caixa 2. Em agosto, num pronunciamento transmitido pela TV, o presidente ainda na defensiva declarou-se “traído” sabe-se lá por quem, reconheceu que o PT cometera “erros” e recomendou ao partido que pedisse desculpas ao país.
Mudou abruptamente de rumo em janeiro de 2010. “O mensalão não existiu”, decidiu a metamorfose ambulante. Como é que é?, deveriam ter berrado em coro milhões de brasileiros estarrecidos com o colosso de provas e evidências expostas nas conclusões da CPI dos Correios, na denúncia encaminhada ao STF pelo procurador-geral da República Antonio Fernando Souza e no processo conduzido pelo ministro Joaquim Barbosa. Num país menos surreal, o assassino da verdade seria alvejado por pilhas de depoimentos e malas abarrotadas de dinheiro. Aqui, a frase virou manchete.
(Abro um parêntese para registrar que o azar de Al Capone foi ter nascido um século mais cedo e no lugar errado. Caso agisse no Brasil deste começo de milênio, poderia afirmar sem medo de réplicas que a máfia só existiu na cabeça de um bandido chamado Elliot Ness, e garantir que trata o Fisco com tamanho respeito que acabou de ser convidado para cuidar das declarações de renda das carmelitas descalças. Terminaria a entrevista como forte candidato a acumular a superintendência da Receita Federal com a chefia Casa Civil. Fecho o parêntese).
A frase de Lula, sabe-se agora, foi a senha para o início da operação destinada a premiar os pecadores com absolvições simbólicas antes que o bando dos 40 fosse julgado pela última instância do Judiciário. No banco dos réus, estariam réus inocentados pelo Executivo e pelo Legislativo. “O mensalão não existiu”, repetiram Dilma Rousseff, José Sarney e Marco Maia até que o mantra se transformasse numa síntese da versão partilhada pelos dois poderes. Se o mensalão não existiu, não houve crimes. Se não houve crimes, não há criminosos a punir, mas injustiças a reparar e injustiçados a redimir. Como João Paulo Cunha.
É o terceiro nome da lista que começou com José Dirceu, prosseguiu com José Genoíno e será completada por Delúbio Soares e Sílvio Pereira. Dirceu recuperou o direito de entrar no Planalto pela porta da frente e foi incorporado à coordenação da campanha de Dilma Rousseff. Rebaixado pelas urnas a suplente de deputado federal, Genoíno foi convidado pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, para servir ao país como assessor especial. No processo que o STF promete julgar até dezembro, Dirceu chefiou a organização criminosa sofisticada e Genoíno, então presidente do PT, foi um dos gerentes da fábrica de delinquências.
Ambos acusados de formação de quadrilha e corrupção ativa, um já virou conselheiro da presidente e outro logo estará aconselhando o ministro que, envergando uma toga, presidiu o Supremo nos piores momentos do escândalo. Falta agora reconduzir Delúbio e Silvinho ao alto comando do PT. Consumada a ressurreição da dupla, os cinco oficiais graduados do bando dos 40 poderão sentar-se no banco dos réus exibindo na lapela o crachá com a inscrição  “inocente”.
“Não há pena definitiva ou perpétua”, declamou nesta semana o deputado Marco Maia. “O Delúbio, como outros dirigentes do partido, já pagaram uma pena altíssima pelas atitudes que tiveram”, prosseguiu o assassino da verdade e da gramática. “Precisamos dar oportunidade ao Delúbio ou a qualquer outro que tenha passado por essa situação a reconstruir sua vida política”. Uma pausa ligeira e, de novo, o mantra: ” Tenho dito em todos os momentos que essa questão de mensalão não existiu”.
Se tudo não passou de miragem, Delúbio nem precisa ser julgado por formação de quadrilha e corrupção ativa. E Sílvio Pereira merece reaparecer nas seções de polícia dos jornais como vítima de um grave erro judicial. Também enquadrado por formação de quadrilha, resolveu confessar as bandidagens cometidas em troca de uma pena mais branda: 750 horas de trabalho comunitário na subprefeitura do Butantã. Recolocá-lo na secretaria-geral do PT é pouco. Se o mensalão não existiu, pode-se deduzir que Silvinho contou que andara barganhando favores por Land Rovers por não ter resistido a torturas. Deve exigir do governo uma indenização de dar inveja a qualquer Marcos Valério.
Confiantes na exasperante lentidão da Justiça e na amnésia endêmica dos brasileiros, os comandantes da ofensiva contra o Estado Democrático de Direito agem com o desembaraço dos condenados à impunidade. Apostam na prescrição dos prazos e na discurseira sobre “falta de provas”. Acham que o processo dará em nada e, sobretudo, que já não há juízes no Brasil. Enganam-se. A maioria dos ministros sabe que, se o STF absolver os quadrilheiros, estará avalizando a falácia segundo a qual o mensalão não existiu. Nessa hipótese, o Judiciário deixará de existir como poder independente.
Lula e seus generais ainda vão aprender que a esperteza, quando é muita, fica grande e engole o dono.